foi curioso na época, e até um pouco sádico talvez, quando recebemos um presente de casamento, na semana em que decidimos nos separar. uma amiga da minha mãe estava há tempos querendo nos presentear e, sem saber o que estava se passando – ninguém com exceção de nós dois sabia – resolveu nos enviar um conjunto de copos de cristal. olhamos para a caixa, demos risada e decidimos brindar, mas assim que as taças se encontram tornou-se impossível sustentar a leveza daquele momento: ali estava a primeira cerveja que tomamos juntos, as garrafas de vinho que dividimos nos dois anos e meio que vivemos em Portugal e aquela noite em que éramos os únicos dançando no meio do bar descolado no centro da cidade. as lágrimas entraram em cena – como entrariam muitas vezes ainda – e seguimos preparando o jantar.
lembro com uma clareza atípica para alguém com uma memória tão ruim quanto a minha, da noite em que saímos pela primeira vez, seis anos antes daquele brinde peculiar. subi as escadas e cheguei na sala de aula onde ele ensaiava, cantando para a minha professora de flamenco dançar. ao vê-lo ali, de barba aparada, camisa jeans e com um sorriso enorme no rosto, o primeiro pensamento que me ocorreu foi "fodeu". na época, estava determinada a ficar solteira por mais um tempo, mas não contava com aquele encontro que me encorajaria a fazer tantos movimentos importantes para a minha vida. em um mês estávamos namorando e, em menos de um ano, embarcamos para Lisboa, onde passamos a morar juntos.
dois dias antes da nossa viagem, faltava pouco para a festinha de aniversário da minha sobrinha, um dos muitos eventos no nosso extenso calendário de despedidas, quando ele desapareceu. perdi as contas de quantas vezes tentei ligar e fui atendida pela voz mecânica da caixa postal. "cadê ele?", minha família perguntava. e eu me envergonhava de ter que responder "não sei". algumas horas depois ele apareceu portando uma explicação bastante razoável: seus pais haviam perdido o vôo de Belo Horizonte para São Paulo e, transtornado pelo medo deles não chegarem a tempo do nosso embarque, ele havia saído para dar uma volta e esfriar a cabeça. entendi e acolhi aquela situação, mas não pude ignorar que, pela primeira vez desde de que tínhamos começado a sair, eu havia me sentido profundamente sozinha.
anos depois, a sensação de estar só dentro de um relacionamento havia se tornado uma velha conhecida, tanto minha, quanto dele. as divergências de desejos, sonhos e estilos de vida foram se aprofundando e, de volta a São Paulo, estávamos os dois em esforço, tentando entender o que havia se perdido no meio do caminho, quando fomos surpreendidos pelo início da pandemia. escolhemos o amor que tínhamos, abrigando-nos na preciosidade que era poder nos agarrar em algo tão seguro e familiar, até que, em agosto de 2020, ele decidiu viajar para visitar os pais. pela primeira vez após um longo período de isolamento, precisei enfrentar uma casa assustadoramente vazia. deitada na cama, adiava sistematicamente o início das manhãs mexendo no celular, quando cruzei com uma imagem que me tirou da inércia: um vira-lata com o pelo dourado e um olhar emburrado, que rapidamente se transformou no Bitoque, o cachorro que nós dois sempre sonhamos em ter.
a adoção do filhote nos deu um terreno em comum que há muito não tínhamos, mas isso não bastou para resgatar a relação. em fevereiro de 2021, sentamos os dois para conversar: era chegada a hora do fim. choramos muito, falamos sobre nossos desejos frustrados e sobre o respeito que tínhamos um pelo outro e não queríamos perder. mas e o cachorro? guarda compartilhada. decidimos ali, mais ou menos cientes de todas as dificuldades logísticas e emocionais que isso traria, que faríamos um esforço para dividir a responsabilidade sobre o bichinho.
esvaziamos o apartamento, pintamos as paredes e fomos cada um para um canto: ele para um lugar onde sempre quis morar e eu nunca seria capaz de habitar; eu de volta para a casa dos meus pais. no começo, enlouquecido entre duas novas moradas e uma rotina completamente diferente, o cachorro parecia querer deixar claro que jamais aceitaria um arranjo tão ousado. diante de bolsas de remédio destruídas, chinelos devorados e uma sucessão de problemas de comportamento, o contato entre nós era constante. tudo virava pretexto para trocar uma mensagem ou uma foto do cão se espreguiçando e, uma vez por semana, nos encontrávamos para fazer a troca da guarda, desengonçados, sem saber o jeito certo de abraçar, sem querer demonstrar o quanto sentíamos falta do cheiro um do outro, ansiosos por um protocolo que simplesmente não existia: ninguém nos ensina a cuidar do fim, o que é uma loucura, porque desde o começo o fim estava ali.
tanta coisa acabou quando eu pisei naquela sala de aula e encarei o sorriso dele pela primeira vez e tantas outras começaram no dia da festa de aniversário da minha sobrinha. a história do Bitoque se inicia costurada à nossa separação e segue se desenrolando até hoje, desafiando nossas expectativas e principalmente a nossa capacidade de criar outras narrativas sobre o que acontece quando uma relação termina. tem um pouquinho de fim em todo começo, e um bocado de começo em todo fim. e acho que a continuidade de qualquer história, a transmutação de um amor em outro tipo de amor é proporcional ao quanto somos capazes de cuidar do fim com a mesma ternura que costumamos dedicar aos inícios.
amanhã saio de férias pela primeira vez em três anos. vou tranquila, porque sei que o cachorro vai estar feliz e bem cuidado com o seu outro dono. o som do brinde com os copos que ganhamos de presente da amiga da minha mãe ainda ressoa no ar, mas o timbre agudo do cristal já não nos faz chorar e se parece mais com um presságio, um anúncio solene de tudo o que ainda virá.